quinta-feira, 8 de maio de 2014

-->


 TEXTO BASEADO NA FOTO DE BRUCE DAVIDSON

O autocarro parou, vomitando corpos  nauseabundos e sonâmbulos que rapidamente desapareceram no meio da cidade deserta, iluminada pelos néon das lojas . A última passageira desceu lentamente, a medo, pousando um pé, de cada vez, no asfalto negro, olhos baços e extasiados parados nas órbitas e pensou: “ cheguei” - depois de tantos anos, meses , dias de tensões reprimidas e de vontade de fugir.  Saíra de casa tão somente com um saco feito à pressa e com Nini - a gata – companheira da sua solidão, da vida refreada, confidente dos sofridos ais – calados – após as violações. Estava, agora, livre. O medo que sentia era diferente dos outros medos de ter medo; avançou, procurando um refúgio. Na entrada do prédio Wellington viu como seu o recanto que a poderia acolher. Nini cravou-lhe as unhas aguçadas no casaco, como que alertando-a para um perigo. A jovem acalmou-a: era apenas um transeunte que vagueava em direção a parte incerta – como elas. A madrugada começava a arrefecer e o estômago ronronava em simultâneo com Nini. Antes de fazer o seu ninho decidiu andar um pouco mais na esperança de encontrar um café aberto para poder saciar-se a ela e à gata. E encontrou. Pediu um copo de leite e dividiu-o com a sua companheira e regressaram.
Nini voltou a ficar inquieta e voltou a ser acariciada. Nini não parou e (desta vez) rasgou o casaco da dona, deixando sair um fio de sangue. O transeunte seguia-as. Alice acelerou o passo e o transeunte, também. Correu e o transeunte, também. Alice aconchegou Nini no seu peito e parou. O transeunte aconchegou a sua máquina e parou, também. Nini olhou e o transeunte disparou. O flash iluminou e a câmara guardou Alice com o seu saco às costas e com Nini no regaço. Numa cidade iluminada apenas pelos néon das lojas. 
Foto de Bruce Davidson